As verdades incômodas de Laços de Família

As verdades incômodas de Laços de Família

Desafio-me a escrever sobre Clarice mais uma vez. Confesso que essa tarefa sempre me aterroriza. Chegada a hora em que meus ofícios foram prorrogados para que eu possa me dedicar a escrita deste texto, me encontro paralisada em frente ao computador. A página branca do word me angustia; sou deixada a sós com Clarice. Nos últimos meses, enquanto mergulho em sua obra para escrever-lhes sobre minhas impressões, percebo o quanto suas palavras encantam ao passo que também sufocam. É como ouvir verdades desconfortáveis de sua psicóloga, sentir-se vasculhado por dentro por suas palavras.  Clarice escreve para machucar.

A literatura clariceana não se abstém da consciência dos papéis de gênero performados em nossa sociedade. Tendo sido mulher, mãe e esposa, Clarice era ciente das injustiças sofridas pelo seu sexo, e não deixava de questioná-las através de sua literatura. Uma vez separada do marido diplomata em 1959, a escritora retorna ao Brasil e passa a ter a escrita como única fonte de subsistência. Assim, com seus contos sendo publicados mensalmente na revista Senhor, Clarice volta ao cenário literário brasileiro com a  força de suas palavras desconcertantes e a independência como motivador.

E Laços de Família parece ser o lugar onde a autora melhor questiona esses padrões impostos pelo patriarcado. Em cada um dos 13 contos reunidos, o incômodo reverbera através dos cotidianos explorados pelos narradores atentos, seja pela percepção dos personagens diante da dureza de suas realidades, seja pela naturalização do absurdo. Os laços aqui, não são somente os que enfeitam, mas os que aprisionam e machucam.

Pois é isso o que encontramos em Laços de Família, a veracidade dos dias que nos passa despercebido enquanto os vivemos, mas que, vez ou outra, em momentos de profunda análise ou de tropeço com a realidade, nos revela a crueldade das estruturas em cujas raízes estamos emaranhados. Assim, em contos que cercam a banalidade dos conflitos familiares, a autora investiga os intrincados arranjos de poder e violência que permeiam cada relação e que aprisionam, sobretudo, as mulheres. Se em Amor a protagonista Ana, num momento de escape da prisão que a cerceava, percebe a rudeza inescapável de sua vida doméstica; em A menor mulher do mundo, Pequena Flor é cruelmente colocada em exposição como um animal no zoológico, sob o olhar e julgamento alheio. Julgamento este, aliás, proveniente de pessoas em suas próprias casas e que estão, por sua vez, entranhadas em suas próprias estruturas dignas da atenção de Clarice.

Podemos ver parte da alienação feminina a que a escritora tanto se incomodava em um trecho extraído de A imitação da rosa:

Tendo exposto as personagens, especialmente as mulheres, em suas situações de inércia doméstica que as afastava “do perigo de viver”, a autora provoca no leitor os questionamentos que perpassavam a sua mente já na década de 1950, talvez como um pedido para que a sua indignação fosse a do outro também; ou talvez como uma tentativa de ficcionalizar seus ressentimentos, escrever o que vivia, escrever para deixar de viver, quem sabe.

Se procurava por uma leitura que me proporcionasse aconchego, descobri que havia mirado no lugar errado. E é claro que aqui eu me permito exageros, mas o que seria da escrita sem o exagero dos verbos, a ficção dos momentos, a verdade contada em forma de mentira? Contrário do que esperava, aqui tudo transborda enquanto procuro por encaixes perfeitos. Às vezes precisamos de conforto, às vezes precisamos de pequenas revoluções internas. Deixo-os então com meus registros, e até o próximo verbo de Clarice.

Confira também minhas humildes impressões sobre A hora da estrela e Água-viva.

O texto de Clarice Lispector costuma apresentar ilusória facilidade. Seu vocabulário é simples, as imagens voltam-se para animais e plantas, quando não para objetos domésticos e situações da vida diária, com frequência numa voltagem de intenso lirismo. Mas que não se engane o leitor. Em poucas linhas, será posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona do universo de homens e mulheres de classe média ou mesmo o de seres marginais. Desse modo, o leitor defronta-se com a experiência de Laura com as rosas e o impacto de Ana ao ver o cego no Jardim Botânico. Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras que se tornam fluidos e erradios, como o que é dado ao leitor a compreender acerca da relação de Ana, seu fogão e seus filhos, ou das peregrinações de uma galinha no domingo de uma família com fome, ou do assalto noturno de misteriosos mascarados num jardim de São Cristóvão. E, como se pouco a pouco se desnudasse uma estratégia, o cotidiano dos personagens de Laços de família, cuja primeira edição data de 1960, vai-se desnudando como um ambiente falsamente estável, em que vidas aparentemente sólidas se desestabilizam de súbito, justo quando o dia a dia parecia estar sendo marcado pela ameaça de nada acontecer.

Jessica Caroline

Jéssica Caroline é graduanda em letras-português na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da obra do escritor modernista Ricardo Ramos. Além de gostar de escrever sobre as mulheres incríveis que lê, também dedica-se aos seus próprios escritos em seu blog. Atualmente é assistente editorial na Tocalivros.

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