Parece consenso geral que há uma dificuldade em ler Clarice. Como autora consagrada no cânone da literatura brasileira e presente nas listas de vestibular, se seus livros causam estremecimento ao leitor a mera menção de seus títulos, provocam calafrios no conteúdo tempestuoso de suas narrativas. Mas dentre suas obras provocativas, ouso dizer que A Hora da Estrela é das mais simples, não que seja de qualidade inferior às demais, mas porque, na concepção de seu último romance escrito em vida, Clarice alcança a poesia dos hábitos mais corriqueiros e degradantes de sua personagem.
O que me prende aos escritos de Clarice é a característica verborrágica de suas palavras escritas, isto é, a forma como desenvolve suas filosofias internas de modo prolixamente preciso. A verdade que ela emprega, seja na minúcia de fatores do cotidiano, seja no aprofundamento psicológico de suas personagens. Não há lugar comum na literatura clariciana, pois tudo é esmiuçado nos piores detalhes. O que Clarice parece buscar, sempre, é a cruel exteriorização do indivíduo através da mais profunda análise do interior humano. Homem ou mulher, a autora sabe construir seus personagens a fim de desconstruir-nos em nossos mais recônditos silêncios. Não há segredos que lhe escapem a caneta.
Talvez por isso não seja fácil ler Clarice. A verdade de suas palavras dói, corrói o pensamento raso, despreparado para a truculência de suas narrativas. É preciso fôlego para encarar suas palavras. Uns a categorizam como literatura hermética, inacessível. Eu digo diferente (e não sou a primeira a fazê-lo). Não é que escreve de forma a restringir um público socialmente desprivilegiado, seja pelo reconhecimento social ou de gênero; pelo contrário, a autora desnuda vivências de uma carência absoluta de privilégios.
Se em A paixão Segundo GH ela exibe os pensamentos obscenos e desavergonhados de sua protagonista — uma mulher branca de classe média alta — em A hora da estrela sua escrita é tomada por uma ânsia social de simplicidade narrativa, que acompanha a jovem nordestina Macabéa e sua existência humilde no Rio de Janeiro enquanto trabalha como datilógrafa e vive uma vida miserável, ou muito próxima disso. Quem assume o papel de narrador de sua história é Rodrigo S.M., personagem tão importante quanto a própria protagonista, pois enquanto exerce seu ofício de escritor, divaga entre as dificuldades que é transformar Macabéa em narrativa, ao passo que considera o sentimento de urgência que tem de fazê-lo. Clarice, por sua vez, também é nordestina, e assim como seus personagens nessa história, se muda para o Rio em busca de novas expectativas de vida.
É possível dizer que existe uma espécie de espelhamento aparente não apenas no que diz respeito às características que constituem as personagens, mas na discussão sobre o fazer literário que é sempre retomado no decorrer da narrativa através das divagações de Rodrigo que, por vezes, parece servir de instrumento para que a autora expresse as dores de seu ofício, numa metalinguagem reflexiva e circular. Clarice nos narra não apenas um fragmento de vida vazia que fora a existência de Macabéa e o esboço que é a de nosso narrador, mas sobretudo a própria história da escrita, do ato de narrar a si mesmo ao constituir um ser que é todo, apesar de fictício.
E embora Clarice negasse a necessidade de seu trabalho como movimento de catarse ou forma de desabafo, o produto concebido parece nos revelar exatamente isso: a mais profunda escrita de si, de sua visão de mundo escondida atrás do pensar de seus personagens. Se logo na dedicatória do autor, Clarice precisa acrescentar entre parênteses que o texto a seguir se trata de sua autoria, é porque as barreiras que separam autor e narrador no romance em seguida são muito estreitas, quando existentes. E é por isso que Rodrigo S.M. vai morrendo aos poucos conforme o fim do livro vai se aproximando; é como se, uma vez contada a história que tanto ansiava, sua vida já não fizesse mais sentido, pois seu propósito já havia sido alcançado.
De fato, é difícil ler Clarice; absorver a intenção almejada em cada nova sentença sem se perder em seus devaneios. E talvez nunca sejamos capazes de compreendê-la, não por inteiro. Mas acredito que adentrar o universo clariciano a partir de A hora da estrela é um início não apenas plausível como aconselhável. E nessa escolha, o audiolivro da Toca é mais que uma adaptação da obra para uma nova mídia, mas uma interpretação excepcional da atriz Mel Lisboa que, sob um cuidado exemplar da nossa equipe de direção artística e edição, vai te levar a se emocionar com a história de Macabéa.
Ficha Técnica:
Escritor: Clarice Lispector
Narradores: Mel Lisboa
Editora: Rocco
Por Jéssica Caroline