Halloween. All Hallow’s Eve. Antes, uma celebração para honrar os mortos, uma vigília sagrada em que se reconhecia a proximidade entre os vivos e aqueles que haviam atravessado o véu. Uma noite de reverência e assombro, em que o medo era também respeito.
O tempo, porém, tem o hábito de devorar significados. O que era rito se tornou festa; o que era lembrança da finitude virou espetáculo de consumo. Hoje, o 31 de outubro é a epítome do capitalismo norte-americano, um carnaval do grotesco embalado em plástico e açúcar, exportado com a mesma voracidade com que se exportam armas, filmes e slogans. “Doces ou travessuras” ecoa como um hino infantil que pede guloseimas, mas que também funciona como metáfora sinestésica da vida adulta: a doçura imediata em troca de travessuras maiores, talvez mais perigosas, que nós praticamos em nome da sedução e da fantasia.
E não me entendam mal: não é crítica. Longe disso. Halloween é meu não-feriado preferido. Sempre foi. Depois de anos consumindo a data pelas telas — abóboras em janelas de séries, vampiros adolescentes, colégios assombrados em filmes —, precisei experimentar por mim mesma. E que experiência! E, depois de viver nos EUA um Halloween “na gema”, concluí que, nos outros 364 dias do ano, travessura é deixar para nós, humanos, a responsabilidade de lidar com nossos próprios monstros. Doce é consolo, atenção. Isso porque percebi que talvez o mais fascinante no Halloween não sejam as abóboras horrendas, as fantasias ou as máscaras do macabro, mas justamente o que elas revelam: o quem somos que queremos esconder enquanto flertamos com o medo, talvez da realização?, para nos sentirmos mais vivos.
Poético. Existencialista?
Pois bem. Se amo o Halloween, espera-se que ame também um bom terror. E amo. Drácula me cativou ainda adolescente; Frankenstein me privou de sono até o virar da última página; Poe e Lovecraft ainda me fazem suspirar e tornaram difícil que eu aprecie histórias mais… menos. Mas confesso: os arrepios mais intrínsecos, o frio na barriga, a sensação de ser vigiada pelo próprio vazio… Esses não vieram das páginas de vampiros ou criaturas cósmicas, mas de um livro em que o horror não habita castelos e nem ruínas, apenas um quarto pequeno, claustrofóbico, onde uma cama abriga um corpo impossível.
Sim, tenho um livro de Halloween. Assim como há quem tenha livro de Natal, de verão ou até “livro-chocolate” para dias ruins, eu tenho um livro que releio quando o mundo me parece demasiadamente confortável. E logo nas primeiras linhas, sem prelúdio, sem preparação, ele me arremessa diante da criatura mais sombria, asquerosa e temível de todo o universo. Uma criatura que não conhece seu lugar — porque está em todo o lugar.
“Quando Gregor Samsa acordou certa manhã, após um sono inquieto, encontrou-se em sua cama transformado em um monstruoso inseto.”
Aí está. Sem explicações, sem causas, sem lógica. Um inseto. Uma barata.
Franz Kafka (1883-1924) não nos dá a cortina do porquê: apenas nos atira no palco do absurdo em “A Metamorfose”, obra que é considerada uma das mais importantes da literatura. E talvez seja esse o ponto: o absurdo não se explica, apenas se vive. No primeiro instante, meu impulso foi fechar o livro, jogá-lo longe. Uma barata? Como suportar essa imagem? Meu choque não residiu apenas na metamorfose física — patas finas, dorso endurecido, a barriga dividida em segmentos repulsivos —, mas na força da metáfora com quê de sinestesia que tudo faz sentir e naquilo que vem depois: o isolamento absoluto. Gregor ainda pensa, sente e deseja como humano, mas sua nova forma o condena a uma solidão intransponível.
Eis que Kafka me faz perguntar: o que define a humanidade em nós? Nosso corpo? Nossa utilidade? Ou nossa consciência? Há prazo de validade da empatia? — se essas dúvidas não caracterizam um bom filme de terror, com o pior protagonista possível, não sei o que mais há de ser. Talvez por isso, aliás, gostamos tanto de monstros… Seres disfórmicos, fáceis de odiar.
Voltemos à obra de 1915. No início, a família de Gregor reage com cautela. A irmã leva comida, o pai mantém distância, a mãe tenta disfarçar a náusea. Mas a empatia tem, sim, prazo de validade e amor e cuidado duram até o momento em que deixam de ser convenientes. Aos poucos, o carinho se dissolve em repulsa. Máscaras caem.
E isso me fez pensar: quantos idosos, dependentes dos filhos, não sentem essa mesma gradação? Quantos doentes, em hospitais ou casas de repouso, não experimentam o olhar que, primeiro piedoso, logo se torna fardo? O horror em Kafka não é sobrenatural; é doméstico, íntimo, banal. É o momento em que o amor se transforma em cálculo.
“Ele percebeu que não podia contar com a simpatia de ninguém, e que, sem esperança de ajuda, devia lidar sozinho com sua situação.”
É impossível não relembrar a pandemia recente, quando tantos corpos foram isolados em quartos, quando o contato humano tornou-se ameaça, quando abraços foram substituídos por telas. Descobrimos que a alienação não é ficção, mas regra. Em partes, cortejamos ela e não quisemos nos desprender totalmente — nossos hábitos mudaram regidos à conveniência. A sociedade tolera a vulnerabilidade apenas quando pode controlá-la; fora disso, abandona.
Arrisco comentar, então, que o corpo grotesco de Gregor é metáfora da alienação universal. Não é apenas ele quem se metamorfoseia: somos todos nós quando nos tornamos estranhos em nossas próprias vidas. O horror não está na barata em si, mas no reflexo: na doença que nos silencia, na depressão que nos imobiliza, na velhice que nos torna invisíveis.
“Não era apenas a família que o desprezava, era ele próprio que se sentia cada vez mais estranho em seu próprio corpo.”
Eis o terror supremo: sermos exilados de nós mesmos. Ser corpo sem voz, presença sem lugar, consciência sem escuta. O monstro não bate à porta, ele já vive dentro: é o olhar que despreza, a palavra que fere, o silêncio que isola.
Oras.Ainda no começo deste ensaio ponderei que flertamos com o medo porque assim nos sentimos mais vivos. É… quase uma máxima universal: buscamos nas histórias de vampiros e fantasmas uma vertigem controlada, um arrepio que nos sacode e nos devolve, aliviados, à segurança da cama. Esse medo é espetáculo, é jogo, é máscara que podemos retirar quando a luz da manhã entra pela fresta da janela. Mas há outro medo, mais íntimo e sem catarse, que não se dissipa ao amanhecer. Ao reler Kafka, contudo, percebo que se o horror está no reflexo, o grotesco está na moral condicional que governa nossas relações. O medo de criaturas imaginárias é fugaz, mas o medo de sermos descartados, substituídos ou ignorados é eterno, porque ele não vive em castelos distantes, mas dentro de nossas casas, em nossas famílias, em nós mesmos.
“E assim, enquanto Gregor se encolhia em seu canto, a família, pouco a pouco, se libertava dele.”
Não é isso que fazemos todos os dias? Libertamo-nos dos outros quando eles já não servem às nossas expectativas. Libertamo-nos também de nós mesmos ao negar nossas fragilidades. Por isso, neste Halloween, não celebro abóboras iluminadas nem monstros de fantasia. Celebro — ou melhor, confronto — o verdadeiro horror humano: a indiferença, o egoísmo, a alienação. O horror de ver no outro apenas função; de medir o valor da vida em moedas, utilidades ou aparências.
O antídoto? Talvez esteja no gesto pequeno, no olhar atento, no cuidado que insiste. Talvez esteja em recusar a metamorfose silenciosa que nos torna monstros invisíveis. Halloween, afinal, é a noite em que os véus se rasgam. Que este véu seja o da hipocrisia, o da indiferença. Que possamos encarar, sem máscaras, a criatura mais terrível que existe e que Kafka tão habilmente fantasiou de barata mais de um século atrás: nós mesmos.
E se você se sentiu tentado a conhecer essa obra tão célebre, te convido a aproveitar o clima de Halloween para ouvir o audiolivro “A Metamorfose”, que foi produzido com muito doce e alguma travessura pelo nosso habilidoso time de produção. A obra e outros grandes nomes da literatura também encontram-se disponíveis em nossa Assinatura Ilimitada.
Designer gráfica que se tornou pesquisadora de UX, além de storyteller de coração e marketeira por paixão (ou acaso). Entre um filme, um mangá e um bom livro, também arrisco umas histórias próprias. Sou muitas em uma — e adoro me reinventar.
Uau, que reflexão maravilhosa. É impossível não querer conhecer o livro depois dessas palavras 😍
Que texto profundo e reflexivo. Desmascara a sociedade atual mostrando o que a maioria se recusa a aceitar: “O quão alienado e influenciável o ser humano se tornou”.
Nos dias atuais, não podemos mais expressar opiniões sinceras ou divergentes pois as pessoas não estão dispostas a ouvir e te atacam como se você fosse um monstro.
Na era da diversidade, pensar diferente é errado. Ou você se encaixa, ou se torna alvo.
Além disso, as pessoas estão cada vez mais apontando o “erro” dos outros e esquecendo de olhar para si próprias. Até onde é só “culpa do outro”?
O ego não deixa que vejamos nossos próprios monstros para que possamos enfrentá-los e crescer. A final, as histórias de ficção nos mostram tão bem quão doloroso pode ser enfrentar um monstro, não é?
Dito isto, meu desejo para o Halloween é muito parecido com o seu: “Que cada um seja capaz de olhar para dentro de si e enfrentar seus próprios monstros ao invés de apenas caçar os monstros nos outros”.
“Travessura é deixar para nós, humanos, a responsabilidade de lidar com nossos próprios monstros”. Que artigo incrível! Parabéns, Bia!
“A metamorfose” é o livro que li em várias épocas da minha vida e a cada vez me surpreendo mais!
Já ouvi o audiolivro também e recomendo! 🪳
Que fantástica todas as reflexões que esse artigo e a forma como nos leva a ver com um outro olhar todas as alterações que essa data tem sofrido ao longo das gerações. E está nas minhas metas ouvir o áudio de A Metamorfose que inclusive é uma obra que tem muitos anos que li.
Mais um Comentário muito bom de se ler, resumindo uma estória e opinando sobre o enredo.