A maternidade sitiada de Clarice Lispector

A maternidade sitiada de Clarice Lispector

Depois de textos sobre A Hora da Estrela, Água-viva e Laços de Família, enfim chegamos à Cidade Sitiada, lugar pouco explorado da literatura clariciana. Diferente dos livros mais famosos da escritora, este não dispõe do fluxo de consciência pelo qual Clarice ficou famosa em A Paixão Segundo G.H. Pelo contrário, aqui o limite entre narração e pensamentos dos personagens é bem delimitado, como se fosse importante para Clarice diferenciar o que pensava Lucrécia Neves, nossa protagonista, do que o narrador pensava sobre ela. Neste quesito, a narração nos passa uma percepção pouco favorável à moça, sempre de forma a realçar sua simplicidade intelectual e carência de identidade.

E embora comparações entre Lucrécia Neves e Macabéa já tenham sido feitas por aí, este não é objetivo deste texto. Hoje, me ocuparei da relação entre Lucrécia e sua mãe, Ana. Pois Ana é personagem presente em toda a narrativa, ainda que suas aparições estejam em torno do incentivo a filha a arranjar-se em um casamento. Este, aliás, é o grande elemento cerceador dos pensamentos da garota. Deseja casar-se, sim, mas para fugir de São Geraldo, cidade interiorana a qual não sente pertencer. Lucrécia Neves vive em função da busca por identificar-se, pertencer, encontrar-se. E, assim como a maioria das mulheres nos anos 1920, acredita piamente que o fará após o casamento, que lhe servirá como fuga de sua cidade natal e lhe levará para a grande metrópole latino americana.

Já Ana, além de também ansiar pelo casamento da filha, é descrita pelo narrador como vivendo em uma espécie de viuvez feliz, sem os “sobressaltos que podem vir de um homem”. Já dentro de sua estabilidade, a mulher é símbolo da tradição de sua época. Dedicada às tarefas de casa, Ana demonstra ser comprometida com as convenções dos papéis de gênero performados em sua sociedade. Performar, aliás, é um bom verbo para explicar sua relação com a filha, que parece se basear em uma dinâmica de comentários sagazes disfarçados pela futilidade do cotidiano. A comunicação entre Lucrécia Neves, estarrecida em sua solidão e mesmice, e Ana Rocha Neves, habituada a essa mesma mesmice, ampara-se nas imitações dos papéis de mãe e filha, como se não fossem elas parentes de sangue, mas precisassem interpretar, fingir, atuar como consta em um roteiro familiar que lhes fora entregue, e que portanto, foram obrigadas a estudar e decorar.

Devo dizer que eu mesma sou obcecada por representações de relações maternais, pelas sutis indiferenças que se encontra quando observado de perto; pelos indagamentos internos que ficam no puerpério; pelo observar o outro ser humano e se aterrorizar por não enxergar nada de si, ou, por enxergar muito de si e ainda assim se aterrorizar. Ser mãe me intriga, ainda que não deseje ser uma. E Ana me intriga. Seu falar cerimonioso nos diálogos com a filha e suas expectativas de solidão feliz após o esperado casamento me faz pensar que, como as mulheres que me chamam atenção em outras literaturas, ela não quisera ser mãe, mas fora condicionada a esse cenário como condição de existência de uma mulher no século passado.

Eis uma cena do livro que me toca: em um capítulo que revela muito da relação entre mãe e filha, Ana e Lucrécia conversam na sala de estar. A mãe, interpretando o papel que lhe cabe, se incomoda com a falta de ânimo da filha em lhe ajudar nos afazeres da casa, quando enfim Lucrécia afirma que a mãe não choraria se a moça morresse. A narração de Zeza Mota é essencial nessa passagem, no que é possível sentir a súbita quase alegria que Ana se permite sentir ao perceber que a filha talvez estivesse certa. Não, não choraria caso a filha morresse e, pelo contrário, sentiria uma espécie de liberdade inebriante:

Há muito o que poderia falar sobre o possível espelhamento entre mãe e filha no romance em questão. Desde as diferenças que as separam — Ana que por diversas vezes encara Lucrécia, no que a menina está sempre a desviar os olhos de maneira “grosseira”; Ana que se conforma a vida em São Geraldo, no que a filha se entedia com o espaço que não lhe pertence — às semelhanças que as aproximam —; a viuvez de Ana que, por coincidência ou não, alcança Lucrécia, a levando de volta para sua cidade natal; a duplicidade da cena final, em que Lucrécia está vestida tal como a mãe também costuma vestir-se — há muito o que interpretar sobre essa relação, além do que já foi estudado sobre o romance. Fato é que obras literárias são inesgotáveis de sentido. E obras claricianas são, a cada nova leitura, um mundo inteiro a ser desbravado.

Jessica Caroline

Jéssica Caroline é graduanda em letras-português na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da obra do escritor modernista Ricardo Ramos. Além de gostar de escrever sobre as mulheres incríveis que lê, também dedica-se aos seus próprios escritos em seu blog. Atualmente é assistente editorial na Tocalivros.

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