ÁGUA VIVA: O NÃO-ROMANCE DE CLARICE LISPECTOR

ÁGUA VIVA: O NÃO-ROMANCE DE CLARICE LISPECTOR

Escrevi uma vez que as palavras de Clarice são verborrágicas. Hoje acrescento que também são corpóreas, substanciais, entorpecentes. Em Água viva, Clarice escreve diferente: se em A hora da estrela encontramos personagens, cenários, um tempo definido e um enredo se desenrolando em torno desses elementos, aqui somos submersos pelo fluxo de consciência contínuo da personagem. E, diante dessa tamanha corrente de pensamentos turvos, não há espaço para um romance tradicional. 

O que dizem por aí sobre Água viva é que se parece com um rascunho em que Clarice elabora e estuda até alcançar a supremacia de suas obras posteriores, como a própria A hora da estrela e Um sopro de vida. Mas creio que, ainda que seja um esboço a despontar o futuro de sua literatura, o romance em questão não deixa de entregar a qualidade literária que esperamos de Clarice Lispector, podendo estar entre as obras favoritas de muitos. Isso é possível graças a sua escrita inebriante que não dá colher de chá ao leitor, não lhe permite espaço para suas próprias ponderações, do contrário, nos sufoca com o seu mar de instantes que busca compreender. O que se conclui é que não há lugar para nenhum eu além daquele que nos escreve.

A história, então, se trata justamente dessa procura da narradora por sua inscrição no espaço através das palavras que escreve com o corpo. Nossa protagonista, que revela muito pouco de si além do fato de ser uma pintora e se dirigir a um tu masculino, encara uma eterna busca pela atualidade que lhe escapa ao “possuir os átomos do tempo”; quer, também, captar a própria essência no presente. Talvez por isso eu me sinta confiante em afirmar que este parece ser um romance sobre o estudo do tempo, mas não exatamente o tempo na narrativa como estamos acostumados a observar; aquele que diferencia o cronológico do psicológico, que define o século no qual se passa a história e que se divide entre andamentos e anacronias. E, sim, o estudo sobre o tempo presente e atemporal, aquele que se faz através dos instantes vividos enquanto escrevemos, e, obviamente, enquanto a narradora escreve. 

O resultado dessa busca incessante de Clarice pelo entendimento do presente em que se inscreve é o fluxo de consciência ininterrupto, cuja maré nos afoga com sua filosofia. Percebam que, na tentativa de compreender o tempo através da linguagem, a narradora revela também a sua urgência pela escrita e percepção da palavra não como signo linguístico, mas como objeto vivo que incorpora e se modifica. E, assim como o instante que nunca foi mas sempre é, depois de reproduzida no papel, ganha vida própria que não mais se limita ao primeiro registro:“o que eu te escrevo nunca é o que eu te escrevo, mas outra coisa”.

A impressão que tenho é que Clarice busca encerrar-se na linguagem que evoca na ponta dos dedos, exaurir-se até objetificar-se no corpo de seu texto. E que sua ânsia por entender o agora resulta neste romance que não é romance, mas filosofia pura atrás do sentido de se estar no mundo. Sabendo disso, escutar esse audiolivro sem poder sublinhar as sentenças impactantes é como sentir as palavras desfalecerem em nossos ouvidos, misturarem-se aos nossos tímpanos como água-viva se mistura ao mar. E digo, com a mais profunda necessidade de escrita e ousadia de caráter, que não se passa por esse audiolivro sendo o mesmo.  

Confira abaixo um trecho do audiolivro:

Desde seus primeiros textos Clarice Lispector anuncia um brilhante projeto literário. “Água viva”, publicado em 1973, adensa o processo característico de sua narrativa, enfatizando-lhe a fragmentação, a contaminação do romanesco com o lírico e o abrandamento das linhas descritivas e representacionais, recursos menos acentuados em outras de suas obras, anteriores e posteriores.
A trama do livro é tênue, o que faz dele “um romance sem romance”. Um eu, declinado no feminino, escreve a um tu, no masculino, expondo suas ânsias e procuras, num discurso de fluidez ininterrupta entre o delírio, a confissão e a sedução: “Para te escrever eu antes me perfumo toda. Eu te conheço todo por te viver toda.” O eu e o tu de “Água viva” ganham dimensões permutáveis de significação, integrando-se com o não humano: a natureza, as palavras, os animais, a “coisa” ou o “it”. A linguagem se espessa numa densa selva de palavras e a obra descortina voraz processo de correspondências que interconectam vida, paixão e violência.
Obsessivamente, a protagonista de “Água viva” busca surpreender as intrincadas relações entre o instante fugidio e sua inscrição no espaço. Sem nome, escondida sob o pronome eu, a personagem procura entender o significado da solidão e o de seu estar no mundo, no desencadear dos instantes que prefiguram um presente contínuo onde os limites cada vez mais esgarçados entre o que é interior e exterior à personagem desaparecem. Nesse lugar “enfeitiçado”, em linguagem incandescente, escreve Clarice Lispector Seu texto faz fluir o sentimento de agora e, paradoxalmente, interliga a petrificação e a mudança.

Jessica Caroline

Jéssica Caroline é graduanda em letras-português na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da obra do escritor modernista Ricardo Ramos. Além de gostar de escrever sobre as mulheres incríveis que lê, também dedica-se aos seus próprios escritos em seu blog. Atualmente é assistente editorial na Tocalivros.

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