No Ceará, o dia 17 de novembro é celebrado como o Dia da Literatura Cearense. A escolha da data homenageia a escritora Rachel de Queiroz, cearense nascida em 1910 em Fortaleza, no mesmo dia que a cidade escolheu para celebrar a literatura.
Melancólica, mas de sorriso largo, olhos pequeninos, divertida, inteligente, boa de prosa e cheia de anedotas. Decolou logo com seu primeiro livro, e, por seus textos que retratam o nordeste e abordam questões como a seca e as dificuldades da região, chamou a atenção de escritores e jornalistas. “O Quinze” (1930), obra que explora a realidade social da época, tornou-se um marco da literatura regionalista – título que conferiu seu alcance e projeção até os dias de hoje.
Mas a autora de “As Três Marias”, “Vidas Secas” e “O Canto da Sereia”, não se limitou à ficção: redigiu contos, peças teatrais e, principalmente, artigos e crônicas. Grande parte de sua carreira foi dedicada ao jornalismo, sua tarefa diária e principal, e que fazia questão de assim ser reconhecida. Por isso, nunca se declarou escritora e sempre fez questão de enfatizar seu ofício como jornalista. “Eu tenho dito que me sinto mais jornalista que ficcionista. Sempre. Na verdade, minha profissão é essa: jornalista”. Também afirmava que não gostava de escrever. Em diversas entrevistas dizia que só escrevia porque precisava ganhar a vida.
Trabalhou como repórter na redação de O Ceará e no jornal O Povo. No Rio de Janeiro, atuou como colunista e cronista do jornal carioca Diário de Notícias e passou pelo O Estado de São Paulo, pelo Diário de Pernambuco e pela revista semanal O Cruzeiro, onde mantinha a seção “Última Página”, com crônicas sobre temas diversos. Seu estilo jornalístico é notado em toda a sua produção textual.
A dita mancha de tinta
“Quando se houverem acabado os soldados no mundo – quando reinar a paz absoluta – que fiquem pelo menos os fuzileiros como exemplo de tudo de belo e fascinante que eles foram!“
A premiada cronista e escritora também deixou impresso paradoxos. De sua fama por retratar os difíceis tempos de sua região e as honrarias pelos livros, ela também ajudou a escrever tempos obscurantistas da história do país com seu apoio e participação intrínseca no golpe de 64 e na ditadura militar. Raquel nunca negou sua participação e articulação para o golpe militar.
Em 1993, em sua entrevista concedida ao programa Roda Viva, enfrentou o embate com o escritor Caio Fernando Abreu, ao declarar explicitamente sua colaboração com o golpe e a profunda amizade que a ligava ao marechal Humberto de Alencar Castelo. Em entrevista no mesmo período para Isabel Lustosa, a escritora disse não sentir nenhum arrependimento e, mesmo o que veio depois do governo Castelo Branco, a fase mais sombria da ditadura iniciada no governo do sucessor, general Costa e Silva que instituiu o AI-5, não seria nem mesmo culpa do seu amigo. Para a jornalista, Rachel revelou que não só apoiou o golpe como também conspirou ativamente a seu favor, e que já conspirava por um golpe de direita desde o segundo governo de Getúlio Vargas, mas que, teria sido frustrado pelo suicídio de Vargas em 24 de agosto de 1954.
Durante o regime militar, Rachel integrou o Conselho Federal de Cultura, uma instituição conservadora que apoiava o regime, e foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, outra instituição conservadora de apoio à ditadura. Esse status a levou a ser nomeada delegada do Brasil na Assembleia Geral da ONU. Também permitiu que seu nome constasse no diretório da Arena, partido político de sustentação do regime militar. Sua participação e de Adonias Filho, que a escritora dizia ser seu melhor amigo, na conspiração que levou ao golpe de 1964 ainda pode ser esclarecida através de documentos, cartas e outras produções dos dois escritores.
Mesmo com sua tarja dúbia na história, Rachel de Queiroz foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX e seus méritos como escritora do regionalismo nordestino, a voz feminina em seus personagens e os relatos de uma região de secas e ciclos migratórios foram fundamentais para o resto do país entender mais sobre as veias de regiões até então esquecidas pelo Brasil.
Sua obra a garantiu prêmios como o da Fundação Graça Aranha, Prêmio Jabuti de Literatura Infantil, em 1970, e o Prêmio Camões, a maior honraria dada a escritores de língua portuguesa, em 1993.
Faleceu em 2003, no Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade.
“Falam que o tempo apaga tudo. Tempo não apaga, tempo adormece.” Seus textos vivem para sempre.
Conheça as obras de Rachel de Queiroz
Lampião / a Beata Maria do Egito
“Em Lampião e A beata Maria do Egito, temos o melhor de Rachel de Queiroz: a perfeição da linguagem, a clareza e realismo dos diálogos, os cenários nordestinos bem desenhados, a pesquisa histórica e a força indiscutível das personagens femininas”, escreve Acioli. “Todos estes elementos nos dão a certeza de que o texto teatral de Rachel de Queiroz, desde que caiu da pena e pingou no papel, já era borboleta pronta para voar”.
Na Fortaleza dos anos 1930, durante a Era Vargas, Roberto tem a missão de recrutar operários para uma nova célula de esquerda. Uma das pessoas que se interessam é Noemi: mãe de Guri e casada com um homem que não ama mais, ela está em busca de algo que a faça se sentir viva. Nas reuniões do partido, Noemi e Roberto desenvolvem uma conexão intelectual intensa, que os leva a um caso amoroso. Ela se vê, então, testando novos limites morais e éticos, tanto no campo do amor quanto no da política.
Expressão de um socialismo libertário que poucas vezes voltaria a aparecer nos textos de Rachel de Queiroz, Caminho de pedras é considerado seu romance mais engajado. Neste livro, aparecem as primeiras demonstrações de um estilo mais introspectivo e de análises psicológicas que alicerçam cenas de forte intensidade emocional. Um arranjo arguto para contar a história de uma paixão proibida inflamada pela luta.
Memorial de Maria Moura, Prêmio Jabuti de 1993, foi o último romance da escritora, publicado quando ela tinha 82 anos e considerado sua obra-prima. O livro se tornou sucesso de crítica e de público, principalmente após servir de base para uma minissérie de televisão, protagonizada por Glória Pires. Rachel entrou para a história da literatura brasileira por vários motivos: foi uma das precursoras do romance regionalista com O Quinze, lançado quando ela tinha 19 anos, a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1977, e uma das melhores cronistas brasileiras do século XX. É no Brasil rural do século XIX que se passa a história de Maria Moura. Ela tinha apenas 17 anos quando encontrou a mãe morta, foi violentada pelo padrasto e viu suas terras serem cobiçadas por primos inescrupulosos. Uma mulher vulgar sucumbiria a tantas adversidades, mas Maria Moura possuía outro temperamento.
Rachel de Queiroz se consagrou como um dos grandes nomes na narrativa longa brasileira a partir da publicação do romance O Quinze, em 1930. A antologia de textos curtos A casa do Morro Branco, no entanto, vem provar que a autora também dominava perfeitamente a arte dos contos e crônicas. São 14 histórias na qual a autora expõe todas as características que marcaram obras renomadas como João Miguel, Caminho de pedras, As três Marias e Memorial de Maria Moura: análises literárias da existência humana, em seus aspectos políticos e pessoais. É um relançamento que dá continuidade ao resgate pela Editora José Olympio da obra de Rachel e de outros autores.
“Só conheço o lugar de vista. Como disse, tem um morro; não um grande morro alto, desses que mais parecem montanhas de verdade – e, pensando bem, são realmente montanhas”, escreve a autora na crônica que dá nome ao livro. “O de lá era antes uma colina, ou isso que nós no Nordeste chamamos de ‘alto’, ou ‘cabeço’.
João Miguel é o segundo romance escrito por Rachel de Queiroz, única autora brasileira a gnhar o Prêmio Camões.
Tristão de Athayde considerava João Miguel o melhor dos quatro romances da primeira fase de Rachel de Queiroz. É o drama da prisão. Ainda é um romance profundamente rural, como O Quinze. Um crime e uma absolvição. E entre eles uma traição, uma traição de amor. Em João Miguel a autora se revela a grande mestra na arte de criar personagens vivas, um João Miguel a tomar consciência do seu crime, uma Salu, um seu Doca, uma Angélica. A obra se liberta da sua própria autora e vive por si.
João Miguel é o romance da frustração e da espera angustiada. É um romance social, com um penetrante aprofundamento de análise psicológica. Rachel recria a vida de uma prisão numa pequena cidade do interior. Há uma mistura de fatalismo, de acaso, de injustiça social, neste romance que é o romance da solidão humana e, ao mesmo tempo, uma denúncia e um protesto.
Carlos Galego é assessor de comunicação da Tocalivros, com larga experiência no mercado cultural e de entretenimento.
É autor de dois livros e escolhido entre os 20 principais poetas nacionais em 2021 pelo Poetize.
Editor de trabalhos como Ruídos Urbanos (de Ricardo Martins), Poesia de Mim (de Vanessa Lima), Vou Ali e já volto! (de Gerson Danelon) e Frases da vida (de Alma Impressa).
Se dedica também a artes visuais, e ministra aulas e cursos de comunicação para setor privado, e oficinas de comunicação cultural em Secretarias de Cultura municipais