CANTA E CONTA, SAGARANA!

CANTA E CONTA, SAGARANA!

Pensado e escrito em 1937, entregue primeiramente à famosa livraria José Olympio às cinco e meia do último dia do mesmo ano, o “singelo” livro de contos e novelas regionalistas de João Guimarães Rosa é um dos maiores clássicos da literatura brasileira e, claro, não passaria despercebido pela Tocalivros, que acentua e traz vida ao aspecto escrito.

De uma oralidade clamorosa, tal como se as palavras de um capiau se deslocassem de sua boca e flutuassem em direção à ponta do lápis do autor, Guimarães Rosa foi capaz de apresentar com maestria a estória de sua gente, aqueles do interior de Minas Gerais, das pequenas cidades como Cordisburgo, onde ele nasceu, ou como ele escreve: “o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.”

De certo modo, a obra teve de esperar alguns anos para receber uma interpretação que revivesse com rigor os sentimentos do autor; como se rogasse por reencontrar aquela palavra falada, inspiração primeira — das cantigas sertanejas, dos diálogos com “vaqueiros de velha lembrança”, como Rosa escreve entre as páginas de um exemplar de Sagarana, ao jornalista e escritor João Condé — foi em 2020 que lançamos o suprassumo da interpretação da obra, na narração do ator Rubens Caribé.

Antes de tudo, é indispensável destacarmos brevemente a definição de estória e narrativa, elementos cruciais e adotados nas prosas rosianas. O primeiro termo, apesar de arcaico, ou seja, ter caído em desuso, muito bem se encaixa para designar os contos e novelas do agora audiolivro. Proposto por João Ribeiro, crítico literário e eterno membro da nossa Academia de Letras, o neologismo estória está atrelado a narrativa popular folclórica (ficcional); o conto tradicional. Muito embora a palavra “história” tenha passado a denominar tanto a ficção quanto o real, a preferência pelo neologismo também foi adotada por Rosa como forma de manter a essência da narrativa popular, o que de fato é Sagarana, obra ligada intimamente ao ato de narrar como um contar propriamente dito.

Já em seus primeiros momentos, a epígrafe-cantiga de O burrinho pedrês (Velha cantiga, solene, da roça), cantada na grave mas serena voz de Rubens Caribé, serve de prenúncio do que o ouvinte pode esperar positivamente de nós. O regionalismo e a musicalidade, marcas de Guimarães, já são postos em evidência pela melodia do canto em palavras, do vaqueiro que conduz lentamente o gado pelas pastagens e currais, conhecido como aboio, e que se mostra presente em quase toda a obra. É inevitável assim destacar o estudo e o esforço da direção e do narrador para que não se tornasse uma interpretação caricata e, principalmente, estereotipada do povo sertanejo. Além do mais, cabe aqui ressaltar a inspiração das cantigas na moda de viola, na embolada — música popular cantada em dupla, geralmente improvisada e acompanhada pelo pandeiro — e no jongo, música de origem africana, também conhecida como batuque ou tambor. Um fato curioso é que esse exercício de inspiração também foi feito pelo próprio Guimarães, quando começou a escrever seus contos. Ele relata em carta: “passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, revendo paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso.”Meu desejo era escrever sobre todos os detalhes de cada palavra narrada, mas por enquanto destaco a produção de Sarapalha e A hora e vez de Augusto Matraga, duas estórias emocionantes, que inclusive fizeram chorar meus colegas de pré-produção ao ouvirem o audiolivro finalizado. O primeiro traduz, com a intensidade e a sabedoria já exigidas pela escrita de Rosa, o cotidiano solitário do homem sertanejo acometido pela malária, doença que teve seus primeiros registros por volta de 1930 — ano muito próximo da publicação de Sagarana. Com a voz de Caribé, mergulhamos nesse sofrimento causado não só pela febre da doença, mas também pela febre da paixão que ambos nutriam pela mesma mulher. Por último, Augusto Matraga trata de fechar a obra com chave-de-ouro. A violência, a moral e a ética, o misticismo e a religião são planos de fundo da rendição do herói rosiano, o jagunço impiedoso que se encontra entre o dilema do bem e do mal. A densa, visceral e, segundo o próprio autor, “mais íntima” estória do livro, vale a pena ser apreciada com o mesmo zelo e delicadeza que nos empenhamos em oferecer ao nosso audioleitor com toda certeza!

“Sagarana” traz cenários e personagens típicos do interior do país.
Mais especificamente do sertão de Minas Gerais. Morros, riachos, jagunços, vaqueiros, bois e cavalos povoam as páginas das estórias magistralmente construídas por Guimarães Rosa, cuja habilidade para criar enredos e protagonistas diversos e repletos de detalhes encanta leitores até hoje e permanece influenciando gerações e gerações de escritores.
A linguagem inventiva de “Sagarana” é outro aspecto que distinguiria para sempre o autor no campo da literatura brasileira. Ao mesmo tempo em que incorpora fragmentos essenciais da oralidade sertaneja, pescando regionalismos e recuperando antigas expressões de linguagem do sertão, Rosa inova com a criação de neologismos cuidadosamente lapidados.

Isabella Santos

Isabella Santos é graduanda de Letras português-francês na Universidade de São Paulo (USP), com foco em Tradução e Literatura Portuguesa. Dedica seu tempo a leitura de diversos gêneros literários, de mangás a clássicos nacionais e internacionais, destacando autoras como Clarice Lispector e Virgínia Woolf, como também faz parte da equipe de pré-produção da Tocalivros.

Deixe um comentário