Além da Palavra: explorando o universo literário de José Saramago

Além da Palavra: explorando o universo literário de José Saramago

Neste mês de novembro, seria o aniversário de um dos maiores escritores da literatura mundial: José Saramago. O autor português foi um dos autores mais importantes do século XX, sendo inclusive vencedor de dois grandes prêmios: Prêmio Camões, a mais tradicional premiação de literatura em língua portuguesa, e o Nobel de Literatura, a famosa premiação literária internacional. 

Tais feitos se justificam pela genialidade do autor, que nos deixou em junho de 2010. Caso você não o conheça, que tal ler o artigo de hoje para saber um pouco mais de sua história e obras? 

Quem foi José Saramago?

Nascido em 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, aldeia portuguesa da província de Ribatejo, Saramago mudou-se para Lisboa com seus pais quando tinha menos de dois anos de idade.

Aqui vale salientar que seu nome seria José de Sousa –  mesmo nome de seu pai -, porém o funcionário do Registro Civil o registrou José de Sousa Saramago – este último sobrenome sendo uma alcunha pela qual sua família era conhecida na região. Saramago era uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres.

Aos 16 anos começou a frequentar um curso técnico de serralheria mecânica, no qual teve acesso aos livros de literatura, descobrindo o gosto pela poesia. O autor trabalhou como serralheiro mecânico, desenhista e funcionário público, até ingressar na carreira editorial, trabalhando como jornalista, tradutor e editor. 

Sua vida dedicada à escrita só teve início realmente quando houve a tentativa de golpe militar, em 1975. Por ser filiado ao Partido Comunista Português, Saramago perdeu seu cargo no jornal e não conseguiu emprego em nenhum outro lugar por sua posição política, o que o levou a escrever livros. 

Em 1947 publicou sua primeira obra “Terra do Pecado”. Passou anos sem publicar uma nova história, voltando a fazê-lo em 1980, com “Levantados do chão”. Depois vieram diversas outras obras literárias, dentre elas “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, romance que na época foi tido como polêmico, chegando a ser censurado pelo governo português, que vetou sua participação no Prêmio Literário Europeu. 

O autor português aventurou-se por diversos gêneros literários: poesia, peças de teatro, crônicas, contos, novelas, romances, além da prosa que o consagrou como grande escritor do século XX. Saramago escreveu, também, “Ensaio Sobre a Cegueira”, talvez esta seja sua obra mais famosa no Brasil, que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

O escritor nos deixou em 18 de junho de 2010.

Por que Saramago é importante para a literatura? 

Sendo um escritor português, José Saramago valorizou a língua portuguesa, dedicando-se a escrever histórias por meio dela. Sua escrita traz inquietude, reflexões críticas e uma vontade enorme de mudar o mundo. 

As obras literárias de Saramago são realistas, apresentando temáticas sociais, crítica política e religiosa, além de incluir elementos do realismo fantástico — característica presente na escrita do colombiano Gabriel García Márquez — e o protagonismo humano para os problemas sociais. 

A escrita do autor tem como principais pontos centrais o inconformismo e a denúncia, representando a violência física e emocional produzida pela sociedade. Por isso, suas obras têm como tema a justiça social. 

Porém, Saramago soube usar a forma lírica e até poética para falar de assuntos tão profundos, como o episódio da tortura e assassinato de um operário sob a perspectiva das formigas, em “Levantando do Chão”. 

Já em “Ensaio sobre a Lucidez”, a narrativa se dá sobre uma densa reflexão sociopolítica sobre as tensões pela defesa da democracia — tema tão atual ainda nos dias de hoje em diversos países.  

O autor também inovou no que refere à escrita, visto que sua forma de escrever e usar das palavras e pontuações era diferenciada. Um exemplo: “A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço, e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta hora. O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro, Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso.”

Neste trecho do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, Saramago não usa de travessão para identificar o interlocutor, tampouco pontos finais, apenas manejando o texto com vírgulas. O escritor costumava dizer que as vírgulas eram o sinal de pausa. Com isso, inovou e revolucionou a escrita.  

Aventure-se pela escrita de José Saramago e conheça suas histórias

Ensaio sobre a cegueira

Uma terrível “treva branca” vai deixando cegos, um a um, os habitantes de uma cidade. Com essa fantasia aterradora, Saramago nos obriga fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu.

Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma “treva branca” que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.
O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti.

O Evangelho Segundo Jesus Cristo

Romance magistral e polêmico do Prêmio Nobel de Literatura de 1998.

“O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.” Todos conhecem a história do filho de José e Maria, mas nesta narrativa ela ganha tanta beleza e tanta pungência que é como se estivesse sendo contada pela primeira vez. Nas palavras de José Paulo Paes: “Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago é excelente no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão”.

Ensaio sobre a lucidez

Numa manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário, os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa.

Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre os partidos “da direita”, “do centro” e “da esquerda”; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia – o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país.

É desse “corte de energia cívica” que fala Ensaio sobre a lucidez (2004). Não apenas no título José Saramago remete ao seu Ensaio sobre a cegueira (1995): também na trama ele retoma personagens e situações, revisitando algumas das questões éticas e políticas abordadas naquele romance.

Caim

Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. 

Memorial do Convento

No epicentro desta história está a construção do Palácio Nacional de Mafra, também conhecido como Convento. O monarca absolutista D. João V, cumprindo uma promessa, ordenou que o edifício fosse erguido no início do século XVIII, em pleno processo colonial, à custa de uma imensa quantidade de ouro e diamantes vindos do Brasil, além do sangue de milhares de operários. Dentre eles, havia um certo Baltasar, da estirpe de Sete-Sóis, inválido da mão esquerda depois de uma guerra, apaixonado por Blimunda, uma jovem dotada de poderes extraordinários. Indivíduos habitualmente não observados pela dita história oficial, mas que no entanto constituem seu tecido mais delicado e essencial.

Memorial do Convento – publicado pela primeira vez em 1982 – tornou o português José Saramago um nome internacionalmente aclamado da literatura contemporânea, graças à mistura entre narrativa histórica e história individual. Embora esteja firmemente assentado na tradição da melhor ficção de seu país, a obra cativaria leitores das mais diversas culturas.

As intermitências da morte

“Não há nada no mundo mais nu que um esqueleto”, escreve José Saramago diante da representação tradicional da morte. Só mesmo um grande romancista para desnudar ainda mais a terrível figura.

Apesar da fatalidade, a morte também tem seus caprichos. E foi nela que o primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura buscou o material para seu novo romance, As intermitências da morte. Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema.

Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder “passar desta para melhor”. Os empresários do serviço funerário se vêem “brutalmente desprovidos da sua matéria-prima”. Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não para de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque “sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja”.

Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?

Beatriz Gouvêa

Jornalista e Especialista em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais, faz parte da equipe de Marketing da Tocalivros. Ama literatura latino-americana e brasileira, sendo entusiasta de tudo que envolve nossa região.

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