Na prisão do mundo, a independência de Simone de Beauvoir

Na prisão do mundo, a independência de Simone de Beauvoir

Não se nasce mulher, torna-se.”

Com esta frase, Simone de Beauvoir abre o segundo volume de sua obra mais famosa: “O Segundo Sexo”. Longe de ser uma mera citação, é um pensamento complexo e provocativo. A autora completa ao imprimir nas linhas: “nenhum destino biológico, psíquico ou econômico define a forma que a mulher ou a fêmea assume no seio da sociedade”.

Da rigorosa criação católica, definiu sua posição como ateísta. Da inflexibilidade em relação às normas conjugais e sociais, sua negação ao casamento e à monogamia. Para cada retrocesso em relação aos direitos femininos, seu posicionamento enfático em prol das causas femininas.

O ensaio “O Segundo Sexo” tornou-se uma obra de impacto nos movimentos feministas dos anos 60 e 70, sendo considerado uma bíblia na releitura dos estigmas culturais — que se torna ainda mais notória quando conhecemos seus textos de memória, como “A Força da Idade” e sua enorme produção literário-filosófica, apresentando a seriedade e a complexidade de seus pensamentos.

Nascida em 1908, em Paris, Simone de Beauvoir cresceu em um ambiente bastante religioso, sob a influência de sua mãe, uma católica fervorosa. De seu pai, aprendeu a se virar sozinha. Com a família falida, escutava de seu pai que nunca teria dinheiro para pagar os dotes de um casamento, então deveria estudar muito para seguir sozinha e solteira. Lição de casa feita.

Dos estudos de matemática no Instituto Católico de Paris à formação em filosofia na Sorbonne, tornou-se filósofa, professora e escritora. Entre os amigos acadêmicos, os laços com Claude Lévi-Strauss, Paul Nizan e Jean-Paul Sartre, com quem teve um elo amoroso ao longo da vida — embora nunca tenha aceitado se casar, se opondo à instituição do casamento. Junto com Sartre e outros pensadores e ativistas, formou uma rede de ideias que se entrelaçavam. Sua amizade com nomes como Albert Camus enriqueceu ainda mais sua visão de mundo, numa conexão com o contexto histórico e cultural em que viveu, essencial para entender a profundidade de suas reflexões.

Simone tornou-se ativista política e uma das vozes mais emblemáticas do existencialismo, contribuindo fortemente para a teoria feminista, sendo uma das grandes intelectuais do século XX.

Enquanto escrevo, a força da frase ecoa: “Não se nasce mulher, torna-se.” Beauvoir analisa a opressão de gênero na sociedade, defendendo a ideia de que os papéis atribuídos às mulheres foram construídos socialmente. E sustentou suas ideias explorando os pensamentos, com reflexões que convidam a pensar sobre o significado de ser humano, especialmente em um mundo que muitas vezes nos aprisiona. Trazia a profundidade intelectual de seus olhares através das histórias que contava.

Como em “Os Mandarins”, um convite à reflexão sobre nossas próprias escolhas e a ética que as guia. Personagens complexos que enfrentam dilemas morais, refletindo sobre a responsabilidade do intelectual em tempos difíceis. Explorando a vida da elite intelectual francesa após a Segunda Guerra Mundial, é uma obra que faz questionar nosso papel em um mundo em constante mudança.

Uma curiosidade interessante é que Simone era uma viajante apaixonada. Suas experiências em lugares como os Estados Unidos e a China influenciaram profundamente seu pensamento. Cada viagem era uma oportunidade de desafiar suas próprias crenças e expandir seus horizontes. Essas vivências trouxeram uma nova profundidade às suas reflexões, mostrando que a vida é uma constante troca entre o que conhecemos e o que ainda temos a aprender.

No Brasil, as figuras de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre foram essenciais para a formação da classe intelectual do século XX. Seus pensamentos ainda ecoam por toda uma geração de pensadores — artistas, filósofos, músicos, escritores, jornalistas, políticos, professores, juristas… O existencialismo, como base do pensamento contemporâneo, é impresso em uma legião de intelectuais e filósofos nacionais. Tanto que, em 1960, estiveram no Brasil a convite do escritor Jorge Amado — haviam se conhecido em encontros do Partido Comunista — ocasião oportuna dado o contexto político-social mundial e a efervescência da esquerda brasileira.

Tratados como celebridades, foram seguidos por paparazzis, tomaram água de coco pela primeira vez, conheceram Recife, Salvador, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo, conversaram sobre o futuro do Brasil com o presidente Juscelino Kubitschek em Brasília — e palestraram. Entre as aulas que realizaram em câmpus universitários, destaca-se o discurso de Beauvoir sobre feminismo para uma plateia lotada na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro.A herança de Simone de Beauvoir vai além de seus livros. Ela se tornou uma voz poderosa na luta por igualdade e justiça social. Sua coragem em desafiar normas e sua busca incessante por liberdade inspira a questionar o status quo. Ao ler suas obras, somos levados a um diálogo íntimo — uma mente brilhante que nos instiga a agir, a refletir e a sonhar com um mundo melhor. Um espírito rebelde e ideias que permanecem vivas neste caminho contínuo pela liberdade e igualdade.

Espírito rebelde e ideias que permanecem vivas. Neste caminho contínuo pela liberdade e igualdade.

Conheça as obras da escritora

Box – O segundo sexo – Edição comemorativa de 70 anos

Em 1949, Simone de Beauvoir publicava na revista Les Temps modernes alguns capítulos de seu próximo livro, O segundo sexo. Pioneiro, o texto causou grande comoção por seu feminismo audacioso e consagrou a autora no panteão da filosofia mundial. Em homenagem aos setenta anos desta obra revolucionária, a Editora Nova Fronteira preparou esta edição especial, que conta com a colaboração de grandes pensadoras brasileiras. A antropóloga Mirian Goldenberg, a historiadora Mary Del Priore e a filósofa Djamila Ribeiro abordam, em textos inéditos, a importância da obra ao longo das décadas. O livreto extra traz também o impactante ensaio “Quem tem medo de Simone de Beauvoir?”, da filósofa Marcia Tiburi, e uma entrevista com Sylvie Le Bon de Beauvoir, herdeira e editora da escritora francesa, publicada pela Cult. O material conta ainda com fotos que perpassam a vida de Simone de Beauvoir, uma das mentes mais brilhantes do século XX.

Box – Memórias de Simone de Beauvoir

Ícone do pensamento filosófico feminista e uma das principais representantes do movimento existencialista francês do século XX, Simone de Beauvoir completaria 110 anos em 2018. Em sua homenagem, a Nova Fronteira lança o box especial Memórias, com a trilogia autobiográfica da escritora e filósofa. No primeiro volume, Memórias de uma moça bem-comportada, Simone nos mostra sua infância religiosa numa família de classe média parisiense, a adolescência rebelde e a posterior devoção à literatura. Ela evoca vividamente suas amizades, seus interesses amorosos, seus mentores e o início da duradoura relação com o escritor e filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Já A força da idade compreende um período particularmente fecundo de sua trajetória, de 1929 a 1944, constituindo-se num relato dos anos decisivos na formação literária, filosófica e política da intelectual francesa. O terceiro volume, A força das coisas, inicia-se na Paris da Libertação, com a abordagem de acontecimentos políticos, relatos de viagens, pessoas e filmes que marcaram sua vida.

Memórias de uma moça bem-comportada

Memórias de uma moça bem-comportada é uma esplêndida autobiografia de uma das maiores escritoras do século xx, Simone de Beauvoir. Dona de um espírito inconformado e autêntico, Simone nos mostra sua infância religiosa numa família de classe média parisiense, a adolescência rebelde e a posterior devoção à literatura. Ela evoca vividamente suas amizades, seus interesses amorosos, seus mentores e o início da duradoura relação com o escritor e filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Memórias incríveis, numa obra essencial para quem deseja conhecer um pouco mais a vida de um dos principais ícones do feminismo até hoje.

A força das coisas

O fim da Segunda Guerra Mundial, a França liberta do poder hitlerista e o recomeço da Europa são o ponto de partida para o terceiro livro de memórias de Simone de Beauvoir. Em A força das coisas, ela nos relata sua experiência como pensadora consagrada, numa escrita sóbria e madura. A autora remonta belas histórias de viagens (à Espanha e à Áustria, por exemplo) e o cotidiano da intelectualidade francesa, com montagens de peças, publicações de livros, divulgação de manifestos em revistas, enfim, o soerguimento das manifestações culturais no pós-guerra. Simone dedica ainda parte desta obra a suas impressões sobre o Brasil, a partir de sua visita com Sartre, guiada por Jorge Amado. Esta edição conta com a tradução de Maria Helena Franco Martins e traz um prefácio inédito da professora e pesquisadora Magda Guadalupe dos Santos.

A velhice

Nesta obra profunda e corajosa, Simone de Beauvoir esmiúça o envelhecimento em todos os seus aspectos, apresentando uma revisão histórica sobre essa fase da vida e propondo uma mudança radical na forma de encará-la. A filósofa francesa analisou a fundo como algumas ciências e suas especializações tratam a senilidade, valendo-se também de pesquisas e estatísticas, sempre com o cuidado de não se deixar levar pela aparente certeza dos números. Utilizando diversos exemplos, a escritora relata de forma franca e sensível as experiências e os desafios enfrentados pelos idosos, questionando concepções estereotipadas e destacando a necessidade de respeito e valorização dessa fase da vida. Passados mais de cinquenta anos de seu lançamento, A velhice se revela um ensaio extremamente atual e imprescindível.

O Sangue dos Outros

França, década de 1940. Os alemães, aos poucos, vão tomando espaço nas ruas parisienses, levando um constante clima de tensão à outrora despreocupada burguesia francesa. Nesse cenário, conhecemos Hélène, uma jovem sonhadora e individualista, e Jean, um rapaz bem-nascido que decide abandonar seus privilégios para lutar pelas causas operárias e, mais tarde, juntar-se à resistência antifascista. A partir da relação amorosa que os dois vivem e das relações com as pessoas que os cercam, mergulhamos numa inebriante espiral de sentimentos e questionamentos profundos: O que é o amor? Qual o verdadeiro sentido da existência? Como nossas decisões afetam a vida alheia? Em “O sangue dos outros”, publicado pela primeira vez em 1945, Simone de Beauvoir desenvolve os temas que a tornaram uma escritora consagrada. Seu olhar sobre as questões existencialistas, feministas e sobre a dicotomia coletividade versus individualidade envolverá o leitor do início ao fim deste clássico da literatura feminista.

Carlos Galego

Carlos Galego é assessor de comunicação da Tocalivros, com larga experiência no mercado cultural e de entretenimento. É autor de dois livros e escolhido entre os 20 principais poetas nacionais em 2021 pelo Poetize. Editor de trabalhos como Ruídos Urbanos (de Ricardo Martins), Poesia de Mim (de Vanessa Lima), Vou Ali e já volto! (de Gerson Danelon) e Frases da vida (de Alma Impressa). Se dedica também a artes visuais, e ministra aulas e cursos de comunicação para setor privado, e oficinas de comunicação cultural em Secretarias de Cultura municipais 

Deixe um comentário