Por dentro do enredo de Fogo Morto: a trajetória decadente de José Amaro

Por dentro do enredo de Fogo Morto: a trajetória decadente de José Amaro

Fogo morto é um dos livros publicados na fase mais madura de José Lins do Rego e com certeza o mais aclamado. Não à toa, Fogo morto é considerado a magnum opus do paraibano, pois nele o autor reúne todo seu estilo literário e envolve o manto social numa obra que compila os temas de seus outros livros. Podemos ver claramente o ciclo da cana de açúcar onde conta a história de um engenho decadente e seus moradores, além da vida dos trabalhadores locais, unido ao ciclo do cangaço. Por isso me parece muito acertado escolhê-lo para construir um audiolivro.

Pretendo focar esta resenha numa possível interpretação da primeira parte do romance intitulada “Mestre José Amaro”, que coloca em foco a trajetória de Zé Amaro, um seleiro decadente e morador do engenho de Seu Lula. Zé Amaro, já no fim de sua trajetória, passa muito tempo ocioso na porta de sua casa na beira da estrada, olhando e falando com todos que ali passam. Cansado, percebe sua inutilidade perante seu passado, o qual não a levou a nenhum lugar, pois morou de favor sempre no engenho, sua filha enlouquece e seu trabalho artesanal é aos poucos substituído pelo trabalho fabril. 

Agora, cansado por uma vida inteira de trabalho árduo na roça, Zé Amaro vê tudo escapar de suas mãos. Percebe que nada pertence realmente a ele e sempre foi um objeto de seu Patrão. Dessa maneira, o homem revolta-se com todo esse sistema, não aceita mais sua subordinação, e exige respeito consigo. Porém, descobre sua incapacidade de ação ao confrontar seu patrão Lula de Holanda, que simplesmente o expulsa de sua casa, único bem restante do protagonista. 

Zé Amaro deposita toda sua esperança no grupo de cangaceiros liderado por Antônio Silvino, grupo que transpirava terror e se opunha aos coronéis da região. Colocado como grupo revolucionário contrário à ordem vigente, é responsável por segurar Zé Amaro em sua casa e atacar o engenho de Seu Lula atrás de seu dinheiro depois dele negar as ordens de Silvino. Porém, o seleiro se frustra com seus revolucionários. Ao se opor à polícia para defender o grupo, é largado na cela e não tem ajuda do Capitão cangaceiro. 

Com a barreira social posta, não pode se revoltar contra Lula e não tem apoio de Antonio Silvino, então Zé descarrega seu ódio em sua filha, esposa e nos negros trabalhadores do engenho, os quais considera inferior. Culpa Floripes, um trabalhador do engenho de Seu Lula, por ter tramado contra ele e o expulsado de sua casa, cogitando diversas vezes matá-lo. Depois se volta para a esposa e sua filha. São inúmeras cenas em que Zé espanca sua filha enquanto a esposa grita dizendo que ele vai matá-la. O homem se descontrola e ataca como um animal sua presa, desconta toda a opressão sofrida por parte de Lula de Holanda.

Zé Amaro, em minha leitura, representa uma certa resistência à modernidade burguesa no campo e à construção hierárquica patriarca. Porém uma resistência solitária e desorganizada. Ele está sozinho, não há uma organização na qual se apoiar para se opor ao regime vigente. Por isso, vê como saída se conformar com a realidade de sua vida medíocre. Acaba por reproduzir a lógica patriarcal e deposita seu ódio em seus subalternos, o que gera sua solidão e, por fim, seu suícidio. Pensando na narração da obra, percebo um zelo da direção em desenvolver esse personagem, de modo que durante o desenrolar da narrativa se torna cada vez mais cansado, revoltado e autoritário, assim gritando cada vez mais alto.

O audiolivro produzido pela Tocalivros consegue apreender muito bem a dinâmica de José Amaro, percebemos na voz de Alexandre Mercki, que o narrador conseguiu criar um personagem revoltado e cansado, digno da personagem do livro.

Lançado em 1943, Fogo morto é considerado por muitos críticos a obra-prima de José Lins do Rego. O livro encerra o que se convencionou denominar, dentro da obra do escritor paraibano, o “ciclo da cana-de-açúcar”, série iniciada pelo romance Menino de engenho, de 1932.

A obra é dividida em 3 partes, cada uma delas dedicada a um personagem específico. Na primeira parte do livro, conhece-se as agruras de José Amaro, mestre seleiro que habita as terras pertencentes ao seu Lula, protagonista da parte seguinte da obra e homem que se revela autoritário no comando do Engenho Santa Fé. O terceiro e último segmento de Fogo morto centra-se na trajetória de Vitorino Carneiro da Cunha, que vive em situação econômica complicada, perambulando a cavalo sempre pronto a lutar com suas forças contra injustiças à sua volta.

A edição de Fogo morto ora publicada pela Global traz dois textos – um de Mário de Andrade e outro de Gilberto Freyre – publicados pouco tempo depois do lançamento da obra-prima de José Lins do Rego. As análises destacam a posição de destaque que o livro adquiria na história da literatura brasileira.

Arthur Keller

Arthur Keller é graduando em Letras Português-Alemão na Universidade de São Paulo (USP) com foco em Literatura Brasileira, sua grande paixão. Admite que boa parte de suas horas de leitura são aproveitadas no ir e vir diário dos transportes públicos, também faz parte da equipe de pré-produção da Tocalivros.

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