Menos de um século depois da sua morte, reconhecido por grandes cineastas e escritores que confessaram a inspiração e influência no escritor, H.P Lovecraft ganha grande popularidade no cenário geek. Veja a cidade imaginária criada pelo autor, “Arkham”, que influenciou a DC Comics e é palco do seu herói mais popular, Batman. Ou as músicas do Metallica, entre elas “The Thing That Should Not Be”, na qual parafraseiam um trecho do conto o Chamado do Cthulhu “That is not dead which can eternal lie”. Mesmo os diretores Ridley Scott e John Carpenter, e o escritor Stephen King, têm Lovecraft como inspiração.
Contista que deu nome ao “terror cósmico”, Lovecraft apoiou-se no gênero gótico para escrever suas obras. Considerando o fantástico uma resposta ao modernismo e ao racionalismo, o autor buscou pela superstição, o medo e a invocação do sobrenatural. Veja que a retomada da religião no gênero gótico – como feita em Drácula – já não faz mais sentido para uma sociedade em que muitas pessoas aderiram ao ateísmo. A dicotomia da luta do bem e do mal também não – estamos adentrando em um realismo pós primeira guerra. Para Lovecraft, o bem nunca vence: a verdade nos deixa loucos; o individualismo tão fortemente secular retoma narradores solitários, em que todo o testemunho de sua solidão é registrado em cartas por personagens não mais vivos, que sucumbiram por não terem mais pé na realidade.
É verdade que a literatura americana olha muito para a psique humana; Lovecraft não é exceção. Dessa vez, trabalha a fragilidade dela, deturpada pelo incompreensível: a verdade humana já não é limitada pela natureza, mas por algo alienígena, com formas “indescritíveis”, demonstrando nossa pequenez diante de criaturas ancestrais que dominam nosso mundo, e seus deuses de nome impronunciável (desafio aqui na Toca de criar consenso na pronúncia de “Cthulhu”.)
A incompreensão de criaturas convivendo com nós, humanos, como no conto “O Cão”, no qual nosso personagem é perseguido por uma criatura que assemelha-se ao animal de quatro patas que conhecemos, mas está muito além do imaginável. Confira esse trecho, narrado por Alexandre Mercki:
Os contos do autor são conhecidos por tais traços comuns: particularmente, minha favorita envolve o relato de um narrador-personagem em primeira pessoa que, antes com uma vida comum, descobre através de objetos e afins grandes criaturas interplanetárias, e sua imagem é capaz de deixá-lo louco, muitas vezes o levando ao suicídio. Para este cenário, selecionei “Dagon”. No conto, acompanhamos um narrador-personagem náufrago à beira de um colapso, que cria uma tensão crescente, pois ele teme o fim do seu relato: a criatura fantástica Dagon e o lugar não-humano em que se encontra. Como muitas narrativas atuais de invocação de algum espírito adormecido, é a descoberta arqueológica de um objeto que invoca o ser primitivo.
Ouça aqui o trecho final de “Dagon” na voz de Leo Raoni:
Algumas coisas tornam-se mais encantadoras anos futuros, mais que em seu próprio tempo; esse é o caso do deslumbramento pelo gótico. Por outro lado, nem tudo sobrevive ao tempo: seu universo torna-se cada vez mais encantador, e quanto mais se distancia da sua época, mais temos o discernimento de criticar H.P Lovecraft. Autor com valores morais do positivismo, sua visão de mundo o mantém como um homem limitado e sem interesse de revogar seu posicionamento social como alguém que viveu na época da insurgência negra. Desde cedo, consumiu escritores conservadores, e manteve esses laços até o final da sua vida.
A ambientação do horror não está presente somente no terror atmosférico, mas no seu racismo escancarado utilizado para acentuar o caráter hediondo nos contos. Veja o seguinte trecho do “Chamado de Cthulhu”: “Examinados no quartel-general após uma viagem de intensa tensão e cansaço, todos os prisioneiros mostraram ser de um tipo muito baixo, mestiço e aberrante mentalmente. Na maioria eram marinheiros, e um punhado de negros e mulatos, em grande parte índios ou selvagens portugueses das ilhas de Cabo Verde, dando um colorido de vodu ao culto heterogêneo. Antes que muitas perguntas fossem feitas, tornou-se evidente que algo mais profundo e antigo do que o fetichismo africano estava envolvido. Degradadas e ignorantes, como eram, aquelas criaturas mantinham com consistência surpreendente a ideia central de sua fé repugnante.”
Não subestimamos o escritor do século XX: impossível não estar ciente de sua posição social no mundo. Ora, se Lovecraft era um homem de sua época, na sua época também tivemos homens e mulheres que lutavam contra o racismo. O medo de associar uma característica negativa a um escritor de mais de cem anos é, no mínimo, covarde. Isentar-se de um posicionamento, ou não atribuir a estranheza que sentimentos ao lê-lo a algum fator e não ir a fundo, é nos tornamos passivos.
Ler esse tipo de texto é não fechar os olhos para essas questões, mas conseguir trazê-las para uma discussão, com intenção de saber quem são aqueles que estão por trás dos escritos. Se ele é lembrado com grande admiração e por inspirar grandes cineastas e escritores, que seja lembrado também por sua expressão xenofóbica e racista, inaceitáveis em qualquer tempo. Que saibamos como apontar em nossas conversas literárias o posicionamento desagradável de autores que gostamos de consumir.
Que sejamos leitores conscientes de nossas leituras, vejo vocês mês que vem.
Treze lendas dos Mythos de Cthulhu é uma coletânea que reúne as principais histórias relacionadas à entidade cósmica criada por H.P. Lovecraft em 1928, aparecendo inicialmente no conto “O Chamado de Cthulhu”. Cthulhu é uma entidade enorme, misto de humano com dragão e polvo, que provoca medo em quem se aproxima. O nome deriva da palavra grega Ctônico, que significa da terra, tendo relação com os espíritos que guardavam minas e tesouros, e estão presentes em diversas mitologias antigas.
Ouça aqui.

Tainara Severo é graduada na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) em Letras Português-Francês. Finalizou seu curso com a pesquisa em tradução do conto de horror “La Remplaçante” de Ketty Steward. Acredita que fazer parte da equipe da pré-produção da Tocalivros e a partilha diária de discussões com seus colegas é um incentivo à leitura constante.