Em 10 de dezembro de 1920 nascia Chaya Pinkhasovna Lispector. Uma pernambucana que fazia questão de afirmar suas raízes, embora tenha vivido no Rio de Janeiro e nascido na Ucrânia. Quando criança, imaginava que os livros nasciam prontos, como uma árvore ou animais até perceber que havia um autor por trás de cada obra. Quis seguir esse caminho.
Símbolo de uma nova geração de escritores modernistas da chamada “Geração de 45’, Clarice Lispector rompeu com todas as regras acadêmicas-literárias. Suas obras se valem de textos não lineares, de alegorias e metáforas, e nos fazem mergulhar no universo de questões mais íntimas e existencialistas sobre a alma humana. Autora única, e uma das principais responsáveis por trazer a presença do inconsciente para a literatura brasileira.
Clarice nunca escreveu para o mercado. Fazia questão de enfatizar em entrevistas que “não escrevo para agradar ninguém’’. Em sua escrita, o desdobrar de seus personagens se revela por seus pensamentos – que ora se mostram presentes, ora despidos por seus comportamentos e reflexões, fez a autora trazer para literatura brasileira uma revolução prosaica e poética que ainda hoje são objetos de estudo para críticos literários.
Com o universo feminino sempre presente na criação de seus personagens, as mulheres são protagonistas em grande parte de sua obra, trazendo características psicológicas de maneira profunda com a riqueza de seus sentimentos, dúvidas e vivências.
Das epifanias presentes em seus textos, a profundidade e delicadeza nas questões vividas por mulheres, Lispector é uma das poucas escritoras a alcançar reconhecimento irrestrito na academia, desempenhando um papel fundamental na constituição de um cânone da literatura de autoria feminina. Romances como “Perto do coração selvagem” e “Água viva” são retratos de um delicado e brutal universo feminino.
Há muito a falar sobre Clarice: sua vida sofrida de infância, a perda precoce de seus pais, suas andanças pelo mundo, suas agonias, seus enamorados, suas cartas, crônicas, romances, sua postura sobre a vida e a sociedade. Mas isso já está posto. Clarice é para ler, ouvir, refletir e bailar.
Cada obra nos puxa para dentro do salão de nosso íntimo, nos pega pela cintura e, ao pé do ouvido, sussurra verdades, reflexões, incômodos e prazeres. Nos faz dançar sobre as sombras humanas e mostra, com clareza e sutileza, seus conflitos. Uma escritora de alma cigana, que nos atiça e nos rodopia em sua dança de palavras.
Obras para ouvir
Água Viva
A trama do livro é tênue, o que faz dele “um romance sem romance”. Um eu, declinado no feminino, escreve a um tu, no masculino, expondo suas ânsias e procuras, num discurso de fluidez ininterrupta entre o delírio, a confissão e a sedução.
Macabéa é uma mulher miserável, que mal tem consciência de existir. Depois de perder seu único elo com o mundo, uma velha tia, ela viaja para o Rio, onde aluga um quarto, se emprega como datilógrafa e gasta suas horas ouvindo a Rádio Relógio. Apaixona-se, então, por Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino, que logo a trai com uma colega de trabalho. Desesperada, Macabéa consulta uma cartomante, que lhe prevê um futuro luminoso, bem diferente do que a espera. Um romance singular sobre o desamparo a que, apesar do consolo da linguagem, todos estamos entregues.
Perto do Coração Selvagem
O surgimento de Perto do coração selvagem causou grande impacto no cenário literário brasileiro, proporcionando à autora aclamação imediata da crítica e de seus colegas escritores.
Íntima e universal, destemida e secreta, Joana “sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as mulheres” e ela destoava do sistema patriarcal em que se encontrava inserida da mesma forma que Clarice se distanciava da literatura de seu tempo, ainda dominada pelo regionalismo e o realismo.
Deste embate à beira do íntimo abismo, Joana torna-se uma mulher completa e Clarice, uma escritora singular e inimitável.
Os textos reunidos desenham um conjunto heterogêneo, onde é possível identificar o tom das crônicas que Clarice Lispector publicava semanalmente em sua coluna do Jornal do Brasil de 1967 a 1973, reunidas em “A descoberta do mundo” (1984), como também certa crueza e humor que os aproxima daqueles publicados na mesma época em “A via crucis do corpo” (1974). Alguns dos textos, além disso, sofreram um deslocamento, pois já tinham sido publicados anteriormente (“Esvaziamento” e “Um caso complicado”), outros foram extraídos de romances e submetidos a ligeiras modificações, procedimentos que indiciam a urgência que a autora tinha de escrever para garantir sua sobrevivência. As narrativas compõem uma cartografia de impressões, sensações, notícias da vida carioca, onde figuram também amigos, referências afetivas e artísticas – Alberto Dines, Fauzi Arap, Raul Seixas, Marly de Oliveira, Nelson Rodrigues, Roberto Carlos, Angela Pralini, personagem que reaparece em “Um sopro de vida”, e também a escritora, uma “tal de Clarice”–, formando uma série de flashes fotográficos que cristalizam, em imagem, um instante no movimento sem parada da existência.
Por Carlos Lopes

Carlos Galego é assessor de comunicação da Tocalivros, com larga experiência no mercado cultural e de entretenimento.
É autor de dois livros e escolhido entre os 20 principais poetas nacionais em 2021 pelo Poetize.
Editor de trabalhos como Ruídos Urbanos (de Ricardo Martins), Poesia de Mim (de Vanessa Lima), Vou Ali e já volto! (de Gerson Danelon) e Frases da vida (de Alma Impressa).
Se dedica também a artes visuais, e ministra aulas e cursos de comunicação para setor privado, e oficinas de comunicação cultural em Secretarias de Cultura municipais