Como pode uma adolescente transformar o mundo com palavras — e ainda mais, quando essa voz parece nascer da pena de um homem? Oras, exemplos não faltam. Holly Golightly e Truman Capote, Joanna Eberhart e Ira Levin, Clarisse McClellan e Ray Bradbury, Cecily Cardew e Oscar Wilde… Se for um pouco além da adolescência então, escolho evocar a Fantine de Victor Hugo, que, para mim aquém de qualquer concorrência, tem força trágica e comovente: Fantine se vende de corpo, partes do corpo, e alma, em nome de sua filha, Cosette. E, se vendendo, ela transforma todos aqueles que a leem.
Com esse gancho, e também recorrendo à quase colidência fonética entre Cosette e a autora que quero trazer a palco, Colette, começo meu ensaio: Gabrielle Colette (1873-1954) deu voz à Claudine, uma adolescente audaciosa, irônica e até um pouco transgressora, cujas palavras atravessaram um século e revelaram a força de sua própria criadora.
Sidone-Gabrielle Colette nos inspirou quando lançou Claudine na escola, primeiro livro do que viria a ser uma série de muito sucesso, e não tardou a perceber que sua própria voz era potente demais para ser silenciada ou escondida sob não um pseudônimo, mas uma máscara. Isso porque Colette escreveu sob a imposição masculina de seu marido Willy, notório caça-talentos, e, de acordo com biógrafos (Kathleen Kuiper, Judith Thurman e Joanna Richardson para citar alguns) chegou até a ser mantida presa em casa para tal. Pois bem. O que hoje seria visto como aquisição indevida de propriedade intelectual (porque “roubo” soa muito forte e “empréstimo sem consentimento” deveras eufemista) misturado com excesso de zelo (porque “cárcere privado temporário” vai chocar e “privação social compulsória em prol de produtividade não reconhecida nem remunerada” não soa bem), à época foi visto como um favor segredoso e da mais alta estima, dentro de um matrimônio amoroso e por um cônjuge disposto a arriscar tudo, até seu status, e com o intuito de publicar ideias esplêndidas mas que estavam fadadas a viverem e morrerem na gaveta da penteadeira de sua esposa e dona do lar, a quem ele amava mais do que tudo e todos; ideias feministas, ideias de uma mulher. Ah vá.
Foi nesse contexto que Colette viu sua obra ser publicada e muito bem recepcionada pela sociedade da época e, mesmo “presa” — às condições, aos costumes, ao marido que não aceitaria a fama da mulher e sua própria incompetência —, encontrou (sua) liberdade na escrita. E, ah!, que escrita! Aqui, lembremos: escrever é um ato de coragem. Então a trama passou a ser simples: Claudine queria mais; Colette passou a desejar mais. Ela percebeu que, se Claudine podia, ela também deveria. Afinal, Claudine era — e seria — o que Colette quisesse. E estava na hora de Colette querer o mesmo para si.
Ao abordar Claudine na escola, novo lançamento em audiolivro da Tocalivros e produzido para a editora Meia Azul na voz da talentosíssima Tatiana Abrantes, não estou apenas revisitando um romance escolar do início do século XX, mas explorando um fenômeno literário que nasceu na interseção entre vida e escrita, entre imposição e invenção. Colette, jovem autora, construiu nesse livro a voz de uma adolescente com uma intensidade rara, enquanto vivencia sua própria tensão entre liberdade e controle, entre expressão e anonimato. O romance, que a projetou como uma das mais importantes escritoras francesas do século XX, revela, ao mesmo tempo, o talento singular da autora e a invisibilidade social da mulher criadora naquela época. É nesse espaço de contradição que a obra se torna fascinante: Claudine não é apenas personagem, mas espelho da própria autora, e seu diário irônico, sensual e inquieto anuncia a emergência de uma voz feminina que se recusa a ser silenciada.
O que me fascina em Claudine na escola é como a obra transforma o ordinário em extraordinário. A narrativa de uma escola provinciana torna-se um microcosmo da vida social e das hierarquias de gênero, e Claudine, com sua sagacidade e humor corrosivo, desmonta essas estruturas com a leveza de quem respira liberdade. Ao lê-la, sinto que cada observação é uma reflexão filosófica sobre o desejo, a autoridade e a autonomia: a adolescência, o corpo e o intelecto não são simplesmente etapas da vida, mas territórios de experimentação e descoberta. Ela foi uma adolescente muito mais interessante do que eu.
Claudine é fascinante justamente por sua ambiguidade: ora crítica feroz, ora arrogante e cruel, ela nos obriga a refletir sobre os limites da liberdade e da transgressão. Sua ironia não é apenas humor juvenil; é resistência filosófica. Ela desafia a moral estabelecida e os modelos de comportamento impostos, afirmando a legitimidade do prazer, da curiosidade e da crítica. Ao escrever, Colette nos oferece uma meditação sobre o que significa ser consciente de si mesma em um mundo que tenta definir e limitar a experiência feminina. É impossível não perceber um diálogo silencioso com pensadores como Rousseau, que falava da educação e da liberdade, ou Nietzsche, que exaltava a força vital e a afirmação do eu. Mas aqui, essa força vital vem filtrada pelo corpo e pela percepção de uma jovem mulher, o que lhe dá densidade e complexidade únicas.
Um aspecto fascinante do romance é a relação de Claudine com sua professora, Mademoiselle Sergent. Que levante a mão aquela, ou aquele, que na adolescência não se apaixonou por um professor. Mas uma aluna e uma professora? E ainda mais àquela época? Eis que Claudine se sente fascinada, atraída e desafiada por ela — uma mistura de admiração, curiosidade e desejo que atravessa a narrativa com sutileza e intensidade. Vejam isso:
“Eu sei muito bem, há muito tempo, que tenho um coração irracional, mas saber disso não me impede nem um pouco”
Essa ambivalência emocional espelha experiências reais de Colette. Durante o período em que escrevia Claudine na escola, ela vivenciou sentimentos afetivos e desejos por mulheres, incluindo sua professora de infância, que inspirou a personagem Mlle Sergent, a diretora da história retratada na escola. Não se tratava apenas de curiosidade, mas de uma descoberta do corpo, da afeição e do desejo feminino — experiências que a sociedade da época tentava invisibilizar. Assim, o livro se tornaria um espaço seguro para experimentar, explorar e afirmar esses afetos e desejos, transpostos para a voz de Claudine. O feminismo do livro, então, não está explicitamente declarado, mas está presente na experiência da autoria: a percepção de que uma jovem mulher pode — e deve — falar sobre si mesma, sobre seu corpo, seu desejo e sua inteligência.
“Essas senhoritas querem ser respeitadas, mas não fazem o suficiente para que as respeitem”
Consigo ver conservadoristas ensaiando um riso sarcástico, prontos para iniciarem seus discursos e provar um ponto… Não se faz necessário. O intuito de Colette e sua Claudine foi justamente provocar, incitar a discussão. O respeito é moral, sonoro. Mulheres que queriam ser ouvidas e, ironicamente, estavam sendo na voz da colega. Homens e mulheres liam, comentavam e exaltavam uma mulher, só não o sabiam. Aqui, percebe-se a crítica à complacência e à passividade, ao mesmo tempo em que se sugere que o respeito verdadeiro deve ser conquistado através da consciência e da ação.
Por fim, o livro pulsa poeticamente. A atenção aos detalhes — a paisagem da Borgonha, os cheiros, os movimentos, os gestos sutis — cria uma musicalidade íntima, quase sinestésica. Claudine não apenas observa o mundo; ela o sente, o traduz e o questiona. Esse lirismo, entremeado à crítica social e ao humor, revela a maturidade precoce de Colette: sua capacidade de transformar experiências pessoais em literatura de alcance universal.
Claudine na escola é, assim, mais do que um romance juvenil: é um manifesto silencioso de liberdade e de emancipação feminina. A personagem é instrumento de libertação e reflexo das próprias vivências da autora, incluindo suas primeiras experiências afetivas e desejos por mulheres. A obra inaugura a carreira de Colette e nos lembra de que a voz de uma mulher, mesmo limitada ou invisibilizada, pode ser poderosa, irônica, intensa e imortal. E essa experiência pode ser ainda mais transformadora quando apreciada em audiolivro.

Designer gráfica que se tornou pesquisadora de UX, além de storyteller de coração e marketeira por paixão (ou acaso). Entre um filme, um mangá e um bom livro, também arrisco umas histórias próprias. Sou muitas em uma — e adoro me reinventar.
Muito boa e sensata a análise e entendimento do contexto da obra. Faz com que tenhamos vontade de ler e entender todo o desenrolar da narrativa. Parabéns.
Já vou salvar na minha listinha para ouvir ❤️